Sempre gostei de acompanhar os escritos da Bráulia, das colunistas da Ultimato, é uma das primeiras que leio quando a revista me chega em casa. Este artigo é um dos que mais gosto dela, foi publicado na edição 307 de julho/agosto de 2007.
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Sem considerar se Porto Velho merece tanta honra, lembro que nos anos 70 o lugar idílico era cantado como a casinha branca no pé da serra, a casa no campo com meus livros e discos e nada mais. O pós-modernismo se decepcionou com a felicidade solitária, tomou Prozac para suportar a casa no campo e conclui que sem o vilarejo-Shangrilá não há felicidade. Não basta ter o pão na minha mesa, quero-o também na do vizinho. Já não me basta o espelho, quero o toque, a gente, a comunidade. A série americana Friends traduz a sede por comunidade do final do século 20 e início do 21. Não me basta a vida adulta, a independência financeira e sexual, preciso de friends, ou seja, quero graça, quero um ombro pra chorar, preciso de relacionamentos dessexualizados, honestos e reais. Na igreja, não me bastam nucas, quero seres humanos.
No evangelho recuperamos a noção verdadeira da individualidade. Em nenhuma outra sociedade além das diretamente influenciadas pelo evangelho reformado existe a noção funcional do indivíduo, com seu valor inerente, um enredo seu, que não é outorgado pelo grupo a que pertence.1 Talvez seja esse o maior legado da Bíblia à civilização ocidental e, de maneira especial, à geografia protestante: eu tenho valor em mim mesmo, a vida em si já me torna importante e único. Graças a essa noção temos direitos humanos também intrínsecos. Um cristão libanês, dr. Habib Malik, foi o principal articulador da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que não seria possível sob nenhum outro guarda-chuva ideológico.
Mas no evangelho recuperamos também nossa significação social. Não posso ter fé sem o outro, não amo a Deus, a quem não vejo, se não me torno samaritano para quem vejo. No cristianismo o mesmo “eu” resgatado pelo valor que Deus me atribui se dilui, se nega, dá a outra face, se torna escravo do outro, é pregado na cruz, cai na terra e morre. O mesmo eu que o amor de Deus me fez descobrir, perde a significação diante do amor do outro. Apenas no cristianismo descobrimos nosso significado — além do nosso eu, somos o outro. E passamos a ser a casa de Deus. Nosso corpo é o templo do Deus que ama, que acompanha e contém em seu coração toda a humanidade. Só em Deus podemos obter a “unimultiplicidade, onde cada homem é sozinho a casa da humanidade”, como cantam Tom Zé e Ana Carolina. Somos templo do Senhor e, portanto, casa das dores, das histórias, das esperanças da humanidade. Edgar Morin me ajudou a entender a tri-dimensionalidade do ser humano. Segundo ele, somos espécie (corpo), indivíduo (alma) e sociedade (espírito)…2
Se andarmos no Espírito, Ele criará em nós, individualmente e pela fé, a sociedade de acordo com Ele. O vilarejo nesse caso não é apenas o bairro onde eu moro, a vila que tenho de cruzar, ou a cidade ao meu redor, mas é a realização da minha própria experiência com Deus. Minha fé concreta recria a vila, desmilitariza a favela, humaniza a cidade.
Notas
1. “É só nesta civilização que a idéia do indivíduo foi apropriada ideologicamente, sendo construída a ideologia do indivíduo como centro e foco do universo social.” (Roberto DaMatta. Carnavais, malandros e heróis. Editora Rocco.)
2. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Unesco, 2002.
Alex, excelente achado!
A Bráulia, sem dúdiva, além de ser uma das melhores missionárias e missiólogas tupiniquins, é uma téologa de primeira – poucas mulheres no planeta fazem teologia como ela. (vou copiar e colar lá no celebrai!rsrs)
Áh, parabéns pelo novo layout, ficou show (não um show da fé)!hehe
Abraços, naquele que nos faz um vilarejo!
É isso aí Alex!
Nos vemos então na bienal, forte abraço!